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MAIS DO QUE SÓ SEXO

 

 Sexualidade(s), no plural 

 

Compreende-se a orientação sexual como um posicionamento do sujeito em relação ao seu desejo sexual. Ou seja, para além da vontade consciente, a pessoa se identifica a partir da forma como os seus desejos se manifestam. Complexa e múltipla, neste contexto, a assexualidade é representada por um amplo espectro de necessidades e experiências associados à sexualidade, incluindo relacionamentos, atração e excitação.

Para representar todo esse espectro de pluralidades, os assexuais carregam a sua própria  bandeira, estampando as cores: preto, cinza, branca e roxa. Na comunidade, alguns se consideram ‘’assexuais estritos’’, aqueles que não sentem atração sexual em nenhuma circunstância. Na ‘’Zona cinza’’, conhecida também como ‘’Gray-A’’, estão os assexuais que podem sentir desejo sexual de forma rara ou em baixa frequência.

 

Quanto às orientações afetivas, no que diz respeito a ‘’romanticidade’’, existem outras diferenciações, como a categoria ‘’arromântico’’, que corresponde ao assexual que não sente atração sexual, nem interesse amoroso. Ao contrário do ‘’assexual romântico’’, que pode se relacionar amorosamente com outras pessoas. Encontrados na área cinza, os ‘’demissexuais’’ manifestam o seu interesse sexual após o desenvolvimento de uma conexão. Dentro dos ‘’românticos’’, há os grupos que se dividem entre ‘’heterroromânticos’’, ‘’birromânticos’’, ‘’panromânticos’’ e ‘’homorromânticos’’.

 

Fora do espectro da assexualidade, está o espectro da alossexualidade. O prefixo “alo” — vem do grego antigo “állos”, que significa "outro" — foi escolhido pela comunidade assexual para designar aqueles cujo a sexualidade envolve, necessariamente, a atração sexual por outras pessoas, ou seja, a não-assexualidade. Neste grupo, estão as pessoas ‘’estritamente héteros’’, ‘’estritamente homos’’ e uma larga faixa no meio que agrega, resumidamente, as categorias  “bissexualidade” e ‘’pansexualidade’’, mas  pode ter suas diferenças em relação à preferências ou atrações maiores por um sexo do que outro. O que diferencia assexuais e alossexuais não é a prática de tais atividades, mas a forma como cada um dos grupos sente atração.

 

 Uma doença chamada ‘desinformação’ 

 

O senso comum aponta a sexualidade como algo natural ao ser humano, mas de ‘’natural’’ ela não tem nada. Pelo menos, não no sentido intrínseco à natureza humana. A manifestação sexual é construída individualmente por cada ser, de acordo com suas vivências, emoções, cultura, e significações que são únicas em cada pessoa. Afirmar que existe uma ‘’ordem natural’’, é determinar essa ‘’naturalidade’’, como o ‘’normal’’. Ao passo que, tudo o que estiver à margem desta ‘’norma’’, irá ser tomado como ‘’anormal’.

 

Em uma sociedade sexonormativa, a ausência de desejo sexual dos assexuais é frequentemente relacionada a possíveis traumas ou doenças. O estigma da ‘’anormalidade’’ resulta nessa ótica distorcida sobre a assexualidade, como se essas pessoas precisassem de tratamento, físico ou psicológico, para a cura de algo. A esquizoanalista, filósofa e artista, Sue Nhamandu, analisa essa patologização como um dos desdobramentos da desinformação:

 

‘’A assexualidade é patologizada porque as pessoas confundem a orientação sexual, com desejo sexual hipoativo e com falta de libido. A nossa cultura de massa é hipersexualizada, tudo é pornô, então, quando alguém grita ‘a minha sexualidade não é só sexo, ela é maior do que isso’, gera uma disrupção nos corpos moldados por essa normatividade’’

 

A falta de libido nem sempre está relacionada a algum problema físico, como a baixa hormonal, normalmente apontada como uma das principais causas do desinteresse sexual. O psicanalista e sexólogo João Paulo Vieira, explica que ‘’a disfunção sexual acontece com a pessoa que possui uma dificuldade em qualquer fase da atividade sexual e sofre por estar nessa condição’’. O que não é o caso dos assexuais. O especialista acrescenta:

 

‘’Ser assexual, não significa não sentir prazer. Eles sentem, porém fazem um deslocamento para as outras atividades da vida, podendo ser uma profissão, um esporte, um fazer ou comer comida, enfim, qualquer outro movimento’’

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 (TRANS)passando a assexualidade 

 

Para compreender como as identidades de gêneros se articulam na sexualidade, é importante refletir sobre a construção discursiva dos gêneros. Desde os seus primórdios, a humanidade construiu a crença de que a existência do sujeito está baseada em um modelo binário de socialização, resultado do entendimento naturalizado de gênero, em que as pessoas são homens (machos) ou mulheres (fêmeas), biologicamente, portanto, masculinas ou femininas.

 

A transexualidade considera a condição de indivíduos assumirem uma identidade de gênero diferente daquela que concorda com suas características biológicas, designadas em seu nascimento. Nesse sentido, as comunidades assexuais e transexuais seguem um caminho parecido: o de desconstruir a linearidade da sequência gênero-sexo-sexualidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nenhuma vivência trans é universal, cada corpo carrega uma existência única. Único, como é o estudante e produtor de conteúdo, Seeley Joseph, homem trans e demissexual. Há 23 anos, ele vive a sua transgeneridade atravessada pela assexualidade. Necessariamente, nessa ordem.

 

A construção da sua sexualidade começou com a descoberta da identidade de gênero. ‘’Eu sou um menino’’, disse Seeley em alto e bom som, pela primeira vez, quando tinha apenas 3 anos de idade. A família evangélica não recebeu bem a informação. Além das práticas religiosas, seus pais também sempre prezaram pela tradição cultural do próprio estado de origem, o Rio Grande do Sul.

 

Uma dessas tradições era a participação nos festivais de ‘’Invernada’’, uma dança típica da região, guiada por um ‘’Peão’’ e uma ‘’Prenda’’. Sua mãe tentou inscrevê-lo em uma das edições do evento, mas o jovem foi expulso em menos de duas semanas de ensaios. O motivo? Ele quis dançar a ‘’Xula’’, que segundo a tradição, é específica para os homens, e ainda bateu no menino que era seu par, porque queria dançar com uma menina. Para Seeley, esses episódios já eram indícios da sua identidade de gênero:

 

‘’Eu sabia que era um menino, sempre soube. Quando criança, lembro de chorar muito à noite, pedindo pra ser curado ou para que quando acordasse, tivesse um corpo de menino’’

 

O seu primeiro contato com a imagem de um homem trans aconteceu através da Internet, aos 13 anos de idade. ‘’Descobri que existia um nome para o que eu era. Vi que era real e que um dia poderia ser eu’’, recorda. Aos 15, o jovem começou o seu processo de se assumir para a família. Um ano depois, assumiu publicamente ser um homem transsexual.

 

Enquanto a transexualidade sempre foi uma certeza para Joseph, a demisexualidade foi um processo mais complexo e confuso. ‘’Já sabia que gostava de mulheres, a grande questão, era eu só conseguir me sentir atraído por alguém que tivesse desenvolvido algum vínculo antes", lembra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na adolescência, começou a clássica ‘’pegação’’ de Ensino Médio. Era tudo meio estranho para Seeley. Ele via os amigos beijando e experimentando, porém não sentia vontade de viver nada daquilo. Na escola, ser um homem trans também impactou na sua forma de se relacionar com os outros. As pessoas o enxergavam como uma mulher lésbica, mesmo ele não identificando como aquilo:

 

‘’Eu me atraía por outras mulheres, porém não me entendia como lésbica. Assim eu não me encaixava, nem para as meninas atraídas por outras meninas, nem para as que se atraíam por homens cis’’

 

Seeley passou pela fase de ir à festas e bares, porém ‘’ir para esses lugares e ficar casualmente com outra pessoa era algo que causava muito desconforto físico e emocional’’. Para ele, ficou mais evidente a predominância das relações casuais e o quanto isso não lhe interessava.

 

‘’Eu me sentia como demisexual, mas não entendia o que isso significava’’, descreve. Depois de compreender as nuances do espectro assexual e se reconhecer na comunidade, aos poucos, tudo começou a fazer mais sentido para Seeley, inclusive, a sua transexualidade:

 

‘’Descobri que ‘trans’, assim como ‘assexual’, também era um ‘termo guarda-chuva’ e que, abraçava outras expressões de identidade, como os ’trans não-binários’, os ’a-gêneros’ e os ‘trans-binários’, como eu’’

 

 Colorindo o mundo com a arte drag 

 

Em cima dos palcos, entre purpurinas e cores do arco-íris, ela performa a sua drag. Por trás das câmeras e roteiros, ela realiza as suas produções audiovisuais. Lyra D. Lírio, ou Beatriz Zilberman? Não faz diferença, elas duas, são uma só.

 

Beatriz, ou simplesmente ‘Bee’, é realizadora audiovisual, artista drag e circense e produtora de eventos. Inserida na comunidade LGBTQIAPN+, a paulistana de 29 anos se descobriu no espectro demisexual no ano de 2016 e considera o processo como um dos mais emocionantes na sua jornada de auto(re)conhcimento. ‘’Descobri o termo ‘demisexualidade’, chorei e pensei: ‘ufa, isso existe e é o que eu sempre fui’’, conta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Antes de se encontrar na escala cinza da assexualidade, Bee relembra ter menos entendimento das suas próprias relações afetivas, já que para ela, os sentimentos fluem em um tempo diferente. A demissexualidade chegou como um auxílio para essas situações que aconteciam, mas que não sabia, exatamente, como lidar:

 

‘’A pessoa gostava muito de mim e eu ficava tipo ‘’calma’’. Passavam uns meses, ela desencanava e eu ficava super afim. Então, até esse sentimento chegar pra mim,  já achavam que eu não estava mais gostando. Aos poucos as coisas foram se encaixando’’

 

Zilberman não concorda com a pressão imposta para um movimento de ‘’sair do aquário’’ (termo usado pelos assexuais para dizer que se assumiram socialmente). ‘’Quem está no padrão da normatividade não precisa sair do armário, por que a gente precisa?’’, questiona.

 

Frequentemente rodeada por pessoas LGBTQIAPN+ em seus trabalhos de produções audiovisuais, a aproximação de Bee Zilberman com essas realidades expandiu o seu olhar sobre a própria sexualidade. Trilhando seu percurso identitário, a  pansexualidade e a não-binariedade se manifestaram como desdobramentos naturais dessas vivências. Ser ‘’pansexual’’, significa que ela se relaciona com pessoas de todos os gêneros, enquanto a identidade ‘’não-binária’’ significa que ela não se identifica com nenhum dos dois papéis feminino x masculino impostos pela sociedade.

 

Nos palcos como artista drag desde 2017, a experimentação com os gêneros que a performance propõe, também teve influência direta na construção de sua identidade. ‘’O drag é meio que uma persona de si, não é um personagem ou uma coisa fora de você. Algumas pessoas até tentam fazer uma drag mais idealizada, mas não tem jeito: a gente sempre traz recortes da nossa personalidade e vida’’, explica a artista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Antes de existir a Lyra ou o Lýrio, a pequena Beatriz já se aventurava nas cores e no mundo mágico, na sua adolescência. De meias calças coloridas e com um livro de fantasia de baixo do braço, a ‘’menina meio duende’’ não sabia, mas um dia se tornaria tão fantástica quanto os personagens das suas histórias favoritas. Hoje, as cores para Bee pintam, também, um outro significado: o da representatividade.

 

‘’A Lyra e o Lýrio sempre estão muito coloridos, das roupas às maquiagens. Já apareci montada de bandeira LGBTQIAPN+, da assexualidade, da pansexualidade, enfim, eu gosto de brincar com as cores das bandeiras que me representam’’ 

 

Quando questionada sobre o(s) seu(s) sinônimo(s) de prazer, Bee Zilberman fala sobre a potência das coisas autênticas e do valor transmitido pelo brilho no olhar. ‘’Seja uma pessoa, uma atitude ou uma performance drag’’ e, cantando o refrão de uma música da banda  ‘Os Mutantes’, ela finaliza: ’Ama, não ama. Se ama, me chama, que eu vou’.

 

 Ser assexual e ter um corpo hipersexualizado 

 

As vivências identitárias são marcadores sociais que revelam, para além do pertencimento individual, uma visão ampla das diversas violências direcionadas a grupos sociais específicos. São movimentações nos quais os sujeitos vivenciam o gênero, o patriarcado, a racialização e a dominação colonial como experiências, sobretudo, corporais. Nesse sentido, é mais do que necessário conhecer a vivência corporal das pessoas negras e entender a articulação histórica da hipersexualização de seus corpos.

 

A história da comunidade negra é marcada por processos de desumanização, exploração e subalternidade. Atualmente, as relações de dominação podem ser reescritas na sociedade de outras formas. A subordinação não se dá mais pela retirada da liberdade, nem pela posição de escravo nas senzalas, mas acontece pela condição de objetificação em que a pessoa negra é colocada. A hipersexualização dos corpos negros transforma o afeto, em objeto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Se essas dinâmicas de afeto, desejo e sexualidade estão relacionadas à noção racial, precisamos traçar uma interseccionalidade de raça, gênero e romanticidade, também, dentro da perspectiva da assexualidade. Afinal, como deve ser habitar um corpo negro e assexual?

 

‘’Nós, pessoas negras, somos ensinadas que o que é de valor para a gente é o nosso corpo. Contam que somos admiradas apenas por termos ‘bundão e peitão’ e que só gostam de nós porque somos ‘quente na cama’. Eu já me coloquei em situações desconfortáveis por achar que só iria me sentir bem, se eu fosse sexualmente desejada. Mesmo sabendo que não iria sentir aquilo em troca, afinal, eu sou assexual’’

 

Relata a carioca de 22 anos, Sol*. A jovem, que é estudante universitária de Geografia, resolveu compartilhar da sua trajetória como pessoa negra, lésbica, não-binária e assexual, optando por manter a identidade omitida.

 

A escola foi um período complicado, ela relembra. A pressão interna e externa, forçou Sol* a viver muitas experiências para tentar ‘’sentir alguma coisa’’. A maioria dessas tentativas (fracassadas), foram com homens. Mesmo já sabendo da sua atração por mulheres, a jovem ainda sentia vergonha e, a sua frustração, vinha em dose em dupla:

 

‘’Não conseguia sentir atração sexual pela pessoa e ficava com aquela sensação ruim dentro de mim. Hoje, eu reconheço que grande parte disso, era também por ser com um homem’’

 

Embora não sentisse atração sexual pelas pessoas, a carioca nunca encarou o ‘’fazer sexo’’ como um problema. Era tudo meio nebuloso, até que ela percebeu: ‘’você pode ser assexual e fazer sexo, assim como também pode ser e não fazer sexo’’.

 

Por não se enxergar representada na comunidade assexual, demorou um pouco para Sol* entender que era possível ela gostar de festa, de socializar, de mostrar o corpo (e se sentir linda por isso), de beijar na boca, e mesmo assim, não ser menos assexual por fazer isso.

 

‘’Não é um problema você ser assexual e não gostar de sexo, ou ser antisocial, que seja. O problema é quando as pessoas tratam esses aspectos como se fosse algo inerente da assexualidade, e não como uma característica de personalidade da pessoa que também, por acaso, é assexual’’, acredita.

 

Falando de representatividade, no caso, a falta dela, Sol* confessa que não se vê acolhida, como pessoa negra e asiática, dentro da comunidade assexual. A ausência do recorte racial é uma expressiva realidade, enquanto a ‘’ótica branca’’ sobre as pautas assexuais, segue sendo a que mais prevalece.

 

 

 

 

 

''Eu não vejo debates de interseccionalidade serem levados em consideração. Por exemplo, ninguém fala sobre a ‘emasculação’ de pessoas asiáticas, que são retratadas muitas vezes como seres fracos e assexuados. Nesse cenário, a imagem que as pessoas visualizam do assexual nunca é de alguém racionalizado,  sempre é de alguém branco’’, expõe.

 

A cor da pele também (des)molda as relações que acontecem entre duas mulheres. Vistas constantemente como objetos sexuais, as mulheres negras que são lésbicas ou bissexuais, se preocupam em sofrer não apenas com a lesbofobia, mas também com o racismo. Racismo esse, inclusive, dentro da própria comunidade que fazem parte, como lamenta Sol*:

 

‘’Conheço muitas meninas que não namoram outras meninas negras. Elas não querem, porque a família aceita ela estar namorando com uma menina, mas não consegue lidar com o fato dela estar com uma pessoa negra. A gente não serve para namorar e apresentar para família’’

 

Para mudar essa realidade de apagamento das pessoas negras, a carioca acredita que ‘’o primeiro passo, poderia ser o mínimo: apenas ouvir. Algo que ninguém faz’’. Reconhecer e ouvir as múltiplas vozes dentro do movimento LGBTQIAPN+ não é uma questão de hierarquizar opressões de ‘’quem sofre, o que’’. É sobre pensar, de fato, todas as letras da sigla, sem invisibilizar a dor de nenhuma das vivências.  

 

 Vozes do ativismo assexual 

 

Reconhecida como um dos principais meios para a legitimação da assexualidade, a Internet é para muitos assexuais, a primeira fonte de conhecimento sobre o tema.  Esquecidos pela ciência e pela mídia, eles seguem desafiando a norma de que sexo é uma necessidade para todos, criando o seu espaço na militância e ganhando voz com o ativismo virtual.

 

Internacionalmente, a ‘’Asexual Visibility and Education Network’’ (Aven) é considerada o maior meio de informações sobre a comunidade assexual. Criada em 2001 pelo ativista sexual norte-americano David Jay, a Aven foi o primeiro grupo virtual destinado àqueles que não se interessam por sexo e é considerada a principal entidade à frente da luta pelos direitos dos assexuais nos Estados Unidos.

No Brasil também existem diversas páginas dedicadas ao tema, espalhadas pelas redes sociais. No Facebook, um grupo intitulado ‘’Assexuais’’ reúne em sua rede, mais de 14 mil membros da comunidade. Nele, as pessoas contam suas experiências relacionadas à falta de interesse sexual e compartilham conselhos sobre o assunto.

 

Por meio das redes de apoio virtuais, muitos usuários desenvolvem o interesse pela militância na luta de inclusão e visibilidade da comunidade assexual. A paulistana Sara Hanna, de 36 anos, é uma dessas pessoas que fazem parte do ativismo assexual no Brasil.

 

‘’Eu me vi nas falas das pessoas contando as suas vidas. Nessas histórias eu pude me preencher de mim. Comecei a me olhar e pensar: ‘nossa, que bom que tô nesses grupos’. Foi, também, onde comecei a sentir falta da militância assexual brasileira de uma forma mais didática e acessível’’, aponta.

 

Das telas, para a vida real, o desejo por defender e visibilizar a vivência da assexualidade conectou o destino de Sara, com o trabalho desenvolvido pelo Coletivo AbrAce. ‘’Existem muitos ativistas solos no meio assexual, mas eu queria um espaço onde tivesse as problematizações possíveis de criar juntos aqui no Brasil, na nossa língua, no nosso contexto, já que a gente vive em um recorte muito específico’’, defende ela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sara Hanna é uma pessoa de gênero não-binário e se identifica como pangray-romântica. Isso tudo quer dizer, que, além de fluir entre o masculino e o feminino, ela também está na escala cinza da assexualidade e se relaciona com pessoas de todos os gêneros. Oficialmente, considera ter entrado para a comunidade assexual no ano de 2015, porém, a história da sua sexualidade começa lá atrás, quando ainda era adolescente e morava no caótico centro de São Paulo.

 

De origem humilde, sua mãe era ‘’solo’’ e precisava passar bastante tempo fora de casa, trabalhando. Sozinha no centro de uma grande metrópole, Sarah viu e viveu, precocemente, muitas experiências. Por ser muito nova, ela não sabia que ‘’aquele não era o comum’’, uma vez que não tinha nenhum outro parâmetro de vida.

 

‘’Tinha a liberdade de fazer o que eu queria, por isso, essa questão de regras era muito confusa na minha cabeça, o que podia e o que não podia.  Atualmente entendo que bastante do que eu vivi, foram processos sem muita orientação’’

 

No seu dia a dia, Sara costumava andar com os meninos da sua rua e passava horas conversando sobre tudo com eles. Aos 15 anos, um desses papos rendeu uma conversa marcante para ela. ‘’Lembro de perguntar para o meu amigo: ‘Quando a gente fica adulto, será que tem um jeito de você poder ter um relacionamento sem precisar transar?’’.

 

Sem grandes respostas, pouco depois dessa conversa, Sara começou a considerar a chance de virar freira, para viver livre das imposições sexuais. Ela lembra desses tempos como um momento ‘’solitário, de muito fingimento e mentira’’. A falta de informação prejudicou muito o entendimento da própria sexualidade durante a sua infância e adolescência.

 

"Quando tentam uma educação sexual, nas raras vezes, vão sempre pro lado do ‘’a libido vai começar a aumentar’’. Nunca é falado ‘’olha, você pode, por exemplo, não ter atração sexual, e tá tudo certo’’. Não é que o sexo seja horrivel, o que é horrível é ele ser compulsório, é ele ser ensinado desde criança, como a nossa única via de prazer’’

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao entrar na faculdade, em 2010, a paulistana teve o seu primeiro contato com outra pessoa ‘’assexual’’. Sem nunca ter ouvido falar do termo, ela quis buscar na Internet mais informações sobre, porém não viu muito conteúdo, principalmente em português. O conceito principal que se encontrava na Web era o da ‘’assexualidade estrita’’, referente a pessoa que não sente atração sexual de forma alguma. Isso fez com que a princípio, Sara não se identificasse.

 

Ela seguiu sua vida, até que em 2012, descobriu a existência da ‘’Área cinza’’ e instantaneamente se enxergou na ‘’demisexualidade’’. Na época, Sara estava casada com um ‘’homem  hétero cis’’. Quando disse que era ‘’demisexual’’ para o seu então marido, a primeira coisa que ouviu foi: ‘’como é que se cura isso?’’

 

Depois que passou a entender como funcionava as escalas de desejo dentro da assexualidade, Sara se percebeu como uma pessoa indiferente ao sexo. Sabendo disso, o seu cônjuge insistia frequentemente para que os dois continuassem mantendo relações sexuais. Confusa e insatisfeita, ela começou a se questionar, também, sobre o seu gênero.

 

"Me olhava no espelho e não sabia mais quem eu era, mas não queria  me encarar. Era um sofrimento,  pensava: ‘Não sei quem sou, não sei o que gosto ou o que não gosto, não sei o que tá acontecendo’’

 

Enquanto tentava se encontrar, Sarah achou as comunidades virtuais de assexualidade. Participando dessas redes de apoio, ela passou a se reconhecer cada vez mais na vivência assexual, na mesma medida em que a insatisfação com o seu casamento crescia.

 

‘’Já não me identificava naquele mundo em que eu fazia parte e isso começou a me angustiar cada vez. Via os assexuais nos grupos e desejava ter aquela mesma liberdade de ser quem eu era, de verdade’’, revela.

 

Ela decidiu dar um tempo no relacionamento, porém ‘’o tempo nunca foi respeitado’’. O combinado entre os dois, era de que o marido iria passar esse período longe, morando em outro local. Faltando menos de uma semana para a mudança, Sara sofreu um estupro marital dentro da sua própria casa. Ela, que já estava tão sobrecarregada com todos os seus conflitos internos, de repente, teve que enfrentar mais uma luta. Até que no ano de 2015, Sara conseguiu ‘’se livrar’’ desse relacionamento.

 

‘’Se passaram 6 anos e, depois de muita terapia, aqui estou eu, já há algum tempo conseguindo falar abertamente sobre. Embora sempre doa, sinto que isso acaba ajudando a me curar. Nos grupos que participo, já vi muitos relatos de pessoas assexuais que passaram e passam por estupros corretivos. Por isso é tão urgente falar sobre as violências que nós enfrentamos’’

 

A necessidade de participar e somar discussões urgentes dentro da comunidade assexual, levou Sara até as movimentações feitas por um grupo de assexuais na cidade de São Paulo. O movimento em questão, foi iniciado pela artista plástica Cris Varkulja, mulher assexual que se descobriu aos 46 anos de idade e que, depois de perceber a falta de uma ‘’voz unida e pública’’, resolveu criar a sua própria rede de apoio.

 

Através da Internet, Cris começou a organizar pequenos encontros no museu em que trabalhava, para debater pautas acerca da assexualidade. Sara Hanna tinha um amigo em comum, que sempre participava dessas reuniões e foi ele quem a convidou para fazer parte do grupo. Dos abraços virtuais que se fizeram físicos, ali, a história do Coletivo AbrAce começaria a se escrever.

 

Uma narrativa escrita, literalmente, pois foram nesses encontros onde o grupo deu início a elaboração de uma carta pública sobre a comunidade assexual. O manuscrito demorou 9 meses para ser concebido, até ser publicado no dia 18 de agosto de 2018.  A ‘’data de nascimento’’ marcou oficialmente o que seria o início de tudo, Sara descreve:

 

 ‘’A carta se tratava de um aviso público sobre o que é a assexualidade, informando quais são as nossas pautas e o que nós exigimos. Foi uma forma de expor a realidade e dizer que estamos sofrendo estupros, harmonizações, ’tratamentos de curas’ extremamente traumáticos. São questões de saúde e política pública, que a gente pede que a sociedade veja e trate com seriedade’’

 

Hoje, o corpo do coletivo conta com a atuação dos ativistas: Sara Hanna, Walter Mastelaro, Rafaela Maiara, Sofia WickerHauser e Lórien Rezende. Nas redes sociais, o grupo promove campanhas de auto aceitação, divulga conteúdo informativo sobre as pautas que permeiam a vivência da comunidade assexual, além de realizar lives para o debate dessas temáticas.

 

 

 

 

 

 

 

Para além do virtual, o movimento conquistou também o feito de adentrar as universidades. Dentro da academia, o AbrAce faz participação nas aulas para turmas de graduação e pós-graduação em Psicologia e Psiquiatria. A inserção do coletivo nas discussões acadêmicas é de uma grande potência transformadora, já que isso representa uma atuação ativa na (re)construção de discursos ultrapassados e desinformados.

 

‘’Só de saber que um profissional vai sair da faculdade e, que, quando futuramente aparecer alguém na clínica falando algo relacionado a experiência assexual, ele já não falará que é uma doença. Vai lembrar da gente e pensar na assexualidade, como uma possibilidade. É isso o que abraça a gente’’, conclui Sara.

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Assexualidade como uma possibilidade

 

O que é sexualidade para você? Beijos, preliminares, masturbação, penetração? Alguns cumprem à risca esse ‘’passo a passo imaginário do sexo’’, mas, para outras pessoas, o desejo não está exatamente relacionado com a interação sexual. Diferente do celibato, que é uma escolha, e do desejo sexual hipoativo, que é uma patologia, a assexualidade existe, e é considerada uma orientação afetivo-sexual como qualquer outra. Por divergir da norma ‘’cis-heteronormativa’’, a assexualidade se encontra dentro da sigla LGBTQIAPN+.

De antemão, é necessário ressaltar que, uma pessoa não fazer sexo, não faz dela assexual. O que torna alguém parte da comunidade, é não sentir desejo da mesma forma que as outras pessoas sentem. Porém, isso também não quer dizer que os assexuais não consigam desenvolver sentimentos românticos ou estabelecer conexões emocionais. Vale dizer: uma pessoa assexual não é uma pessoa "assexuada”, assim como uma pessoa heterosexual, não é “heterossexuada”.

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Bandeira da comunidade assexual exibe as cores preta, cinza e branca, que representam a gradação da sexualidade humana

A assexualidade é representada por um amplo espectro de necessidades e experiências associados à sexualidade, incluindo relacionamentos, atração e excitação
Dentro da comunidade assexual existem grupos, categorias e símbolos particulares
Assim como a assexualidade, a transexualidade também faz parte da comunidade LGBTQIANP+
Seeley Joseph, 23, é um homem trans assexual
Lyra D. Lírio é  artista drag e se encontrou na demisexualidade, presente na escala cinza da assexualidade
Nas suas maquiagens e figurinos, a artista drag  brinca com as cores das bandeiras que a representam
Perante a sociedade, pessoas negras são hipersexualizadas por sua cor de pele 
Dentro da própria comunidade assexual, pessoas negras não sentem a inclusão de debates racionalizados 
Sara Hanna é ativistaassexualidade é representada por um amplo espectro de necessidades 
Verdade ou mentira? Descubra 6 mitos sobre os assexuais
Na Internet, por meio dos grupos on-line, assexuais de todo o mundo compartilham experiências e se apoiam
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